Por José Serra
Dias atrás a presidente Dilma Rousseff aceitou a demissão do sexto ministro acusado de corrupção, irregularidades administrativas, malfeitos, o nome que se queira dar. A terminologia é de menos, importantes são os fatos. O primeiro ano de governo nem acabou e um em cada seis ministros já caiu em consequência de acusações relacionadas ao mau uso do dinheiro público. Deve ser um recorde mundial.
A primeira constatação é a do comprometimento do governo anterior, pois quase todos os demitidos sob suspeita saíram da cota dos herdados. Nesse sentido, é razoável considerar que a própria presidente foi fraca e aceitou do mentor um pacote estragado, por não ter força para resistir à pressão continuísta. Num esforço de leitura benigna, ela estaria agora fazendo a “faxina” na casa que herdou.
Os fatos, no entanto, são soberanos. A presidente não pode alegar surpresa diante do pacote recebido, pois ela própria compunha o núcleo do governo que sucedeu. Foi ministra durante todo o tempo, boa parte dele na posição estratégica de chefe da Casa Civil. Na prática, governou o país quando o então presidente passou a cuidar exclusivamente da sucessão. Não há como, portanto, alegar desconhecimento ou surpresa. Ela era parte importante do jogo.
Há por certo a versão fantasiosa de que os caídos em desgraça são vítimas de tramoias da imprensa. É o autoritarismo seminal do PT em ação. Para a presidente, essa versão só é boa na aparência. Será ela tão fraca que não saiba distinguir fato de conspiração? Caso as suspeitas se confirmem, e a própria Controladoria Geral da União se mostra abismada em certos casos, duas hipóteses se abrem, ambas negativas: ou Dilma ignorava tudo mesmo, evidenciando alheamento da realidade, o sabia das coisas, mas se mostrava disposta a conviver com o triste cenário para manter o apoio dos partidos que a levaram ao Palácio do Planalto.
Não há, no plano dos fatos, como fazer desse limão uma limonada. O governo Dilma vai encerrando seu primeiro ano, seus primeiros 25%, sem estabelecer uma marca. Uma solenidade aqui, um programa prometido ali, um factóide acolá, mas nada de substancial, a não ser a tal faxina, metáfora que, bem pensado, é incômoda, porque remete, necessariamente, à sujeira. Ora, trata-se uma evidência de mau, não de bom governo, especialmente quando a governante é obrigada a ir a reboque das revelações quase diárias de atos ruins na administração. Trata-se de um governo refém da disposição dos jornalistas para investigar. Vive-se aquele clima de “basta procurar para achar”.
Onde está a raiz do mal? No loteamento da máquina, na transformação do governo em uma federação desconexa de feudos entregues a partidos, grupos e personalidades, ocupando cada qual o seu pedaço para obter vantagens pecuniárias. Em troca, garantem à presidente apoio político. Cabe, a propósito, fazer uma indagação: apoio político pra quê? Qual é a agenda de Dilma?
Esse é um modelo que a presidente copiou do antecessor e mentor, que, por sua vez, o adotou a fim de resistir às dificuldades políticas decorrentes das graves revelações sobre o estado moral da administração.
Estamos diante de um mal estrutural, não circunstancial. Existe esperança de que a presidente vá romper com a lógica do condomínio que a elegeu e a sustenta. Não é plausível. Basta olhar para o maciço apoio parlamentar e a divisão dos feudos partidários, inclusive nas grandes empresas públicas e nas agências reguladoras, e se notará que tudo segue como sempre. O petismo é um sistema sem espaço para muita criatividade pessoal.
Será mesmo que governabilidade e patrimonialismo exacerbado têm sempre de andar de mãos dadas? Trata-se, creiam os leitores, de falso dilema, porém confortável para os que estão do poder. É possível, sim, montar um governo de coalizão, com maioria no Legislativo, sem permitir a drenagem setorizada dos cofres públicos pelos malfeitores.
Todos os partidos contam com pessoas honestas e competentes e reúnem parlamentares realmente preocupados com o país e com suas bases eleitorais, ansiosos por levar às regiões que representam investimentos, empregos e benefícios sociais, o que é não só é legítimo como desejável. Os governos dispõem de mecanismos legais e éticos para atender às demandas políticas sem se desfigurar e se transformar numa máquina de produzir escândalos.
Basta compreender que não é o poder que corrompe os indivíduos, mas que são estes que corrompem o poder. Basta que o exemplo venha de cima. O país, aliás, cobra o fim dos erros, dos crimes e da impunidade, muitas vezes adornados pelo deboche de quem acredita estar fora do alcance da lei.
Basta andar nas ruas, conversar com as pessoas, dando um pouco menos de crédito aos áulicos, e se notará a imensa demanda social pela ética na vida pública. Quem precisa ganhar a vida honestamente não se conforma com o deprimente espetáculo, mesmo quando este é tratado como “natural”, como algo inerente ao processo político.
As últimas décadas assistiram à crescente preocupação com o combate à injustiça social. Embora lentamente, com algum resultado, vamos combatendo a péssima distribuição de renda, marca registrada do país. Mas há uma forma de injustiça social igualmente perversa: é a que separa o cidadão comum dos governantes e define padrões distintos de conduta moral.
Se é preciso continuar com o esforço para reduzir a grande distância entre pobres e ricos, é indispensável também eliminar este outro traço terrível da nossa formação: a existência de duas morais, de duas éticas, de dois códigos de conduta distintos — o das pessoas comuns e o dos poderosos, que adquirem o direito de fazer qualquer coisa.
O PT se formou um dia proclamando a luta contra essa desigualdade que infelicita o Brasil. Hoje vemos algumas de suas estrelas a declarar que Fulano de Tal “não é um homem comum” ou que a palavra de uma “autoridade”, contra a evidência dos fatos, “vale como prova”. É nesse ambiente que prospera a aposta na impunidade e, pois, o crime reiterado contra os cofres públicos.
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